domingo, 4 de novembro de 2012

OPINIÃO

A “Cachupa” em risco de perder seu estatuto de base alimentar da população cabo-verdiana, mas mantendo a sua carga histórica e cultural04 Novembro 2012

A década de 40 do século XX p.p. fica para a história como o período mais negro que o povo destas ilhas já viveu.
Por: JORGE DE OLIVEIRA LIMA

A “Cachupa” em risco de perder seu estatuto de base alimentar da população cabo-verdiana, mas mantendo a sua carga histórica e cultural
Foram anos de seca permanente, em que não houvera produção de milho, o que estivera na origem de uma crise alimentar sem precedentes que provocara fome generalizada, mortandade em larga escala e pobreza extrema. Tempos para esquecer, porque nos envergonham e que por certo jamais voltarão a acontecer nas nossas Ilhas.
Para complicar ainda mais a situação, eclodiu nessa altura a Segunda Guerra Mundial, que quase colocou a marinha mercante inoperacional, pois os submarinos afundavam todos os barcos inimigos que estivessem ao seu alcance. Vivia-se, por isso, uma situação de bloqueio e de isolamento total.
Como se tudo isso não bastasse, também surgiu uma outra crise, a energética, pois a importação de petróleo quase que se tornou proibitiva, por ser um produto estratégico considerado material de guerra, e daí a decisão dos beligerantes de afundarem todos os barcos inimigos que o transportassem.
Eu andava ainda na escola primária quando eclodira a II Guerra Mundial e se vivera a mais terrível época de seca e de fome da nossa história, sendo pois testemunha ocular de toda aquela tragédia humana, que ceifou a vida de milhares de cabo-verdianos e que colocou uma nódoa tão indelével na história deste povo que o tempo nunca mais apagará da sua memória colectiva.
Consta que Salazar não gostava muito dos cabo-verdianos, porque os considerava espertinhos demais para o seu gosto e por isso não nos facilitava a vida.
A crise alimentar da década de 40 nunca teria existido se Portugal/versus Salazar tomasse a iniciativa de trazer milho de Angola para Cabo Verde, uma vez que em Angola havia tanto daquele cereal que por lá apodrecia. Ao não fazê-lo quase que ditou a sentença de morte a milhares de nossos compatriotas, que mesmo tendo dinheiro no bolso morreram de fome, porque as lojas estavam vazias de comida, sem nada para venderem, nomeadamente milho.
Para o povo cabo-verdiano o milho é, em primeiro lugar, base da sua alimentação. Também é cultura, porque com ele é que se faz a cachupa, prato típico e cultural. É igualmente histórico porque associado à seca, a sua não produção provocara mortandades cíclicas ao longo do tempo.
Hoje em dia a eventual falta de milho não provocaria pânico à população, porque praticamente deixou de ser um prato insubstituível na dieta alimentar da nossa população. Na verdade, o arroz importado (porque não o produzimos), prato muito preferido pelos cabo-verdianos, sai mais barato porque é de fácil cozedura. A confecção do milho, ou seja da cachupa, sai mais cara, por consumir muito combustível ou lenha. E a cachupa exige outros condimentos que o arroz dispensa o que a torna dispendiosa e de difícil confecção.
Porém, o milho/versus cachupa jamais deixará de ser um prato muito preferido pelos cabo-verdianos, quer em termos histórico-culturais, quer em termos de apetência alimentar. Todavia, na vida prática quotidiana tem vindo a perder terreno porque o arroz, mais barato, tende a destroná-lo, já que paulatinamente vai perdendo o estatuto de base da nossa alimentação, pelo custo cada vez mais elevado da respectiva cozedura.
Para ilustrar o que acabo de afirmar, acrescentarei que cá em casa, e certamente que em muitas outras casas, aos fins de semana comemos cachupa e em todos os dias úteis e não só da semana, o arroz é prato comum. A explicação para isso já foi dada e tem a ver com o facto de ser de cozedura mais rápida, mais fácil e mais barata.
Papas de milho tendem igualmente a entrar em forte competição com a cachupa pelas mesmas razões, ou seja: a cozedura é simples e rápida e a farinha, devidamente preparada e acondicionada pode ser encontrada em qualquer loja ou super-mercado. Uma boa papa de milho não exige carne, nem peixe nem outros acompanhantes, mas se encontrar um bocado de leite...esse sim, torna-a deliciosa.
Antes de terminar referirei que a cachupa tende a ficar um prato mais para ricos do que para pobres, já que a tornaram muito sofisticada. Ou, se quiser, passou a haver duas cachupas: uma para ricos e outra para pobres. Há cachupas tão sofisticadas (para ricos, claro) que mais parecem a célebre “sopa de pedra”.
Eu pessoalmente prefiro uma cachupa simples, mas se fizer parte do pequeno almoço gosto dela guisada e, se possível, acompanhada da inevitável “linguiça” e ovo estrelado. Deixando os leitores com água na boca, termino prometendo voltar mais vezes, abordando outros temas.
Fonte : Jornal  ASemana